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domingo, 17 de julho de 2011

COZINHA ___ RUBEM ALVES

Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.
Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.
As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.
Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.
Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.
Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de beringela, sopa da mandioquinha com manga, sopa de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma...A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)... (Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000.)

2 comentários:

Anônimo disse...

Querida Leninha, que delícia ler o Rubem Alves e ainda mais ouvindo essa música...

Esse texto é tão gostoso que me deu vontade até de mudar minha cozinha lá pra baixo, perto do meu quintal, onde ficam as minhas plantinhas, meus temperinhos que uso no dia a dia aqui em casa, você sabia que eu amo cozinhar? Pois é, adoro... a cozinha é assim pra mim, como no seu texto um lugar íntimo, lugar para conversar com as panelas, temperos, com o fogo e com o fogão, como seu texto diz, assim: sem pressa... beliscando um queijinho e cantando com a comida que vai sendo preparada com calma, amor, carinho... a pressa passa bem longe... Os fogões a lenha me lembram a casa da minha avó, eu era pequena e adorava ficar vendo a vó cozinhar e assim eu sentia aquele cheirinho que só o fogão a lenha é capaz de produzir, de transformar os alimentos... ai ai, quantas saudades despertadas aqui... Assim é a Leninha, faz o coração sorrir, se encher em lágrimas de emoção... e o Rubem Alves ficou aqui só de visita...rs, ele é um lindo, vi uma palestra dele na época da faculdade...
Tenho tanto pra dizer hoje... mas fico agora por aqui... deixando um beijinho, um abraço forte, todo o meu carinho e meu obrigada pela sua linda amizade... fica com Deus minha amiga tão tão tão querida! Su.

tecas disse...

Excelente « Cozinha» de Rubem Alves, querida Leninha. Uma delicia que ao ler, faz desejar remodelar a nossa cozinha, ( pelo menos a minha).Viver num andar...não dá para ter fogões de lenha. Assaltou-me uma vontade de deixar o andar e ir viver para a casa que tenho em P. de Lima. Saudade, da cozinha de minha avó, com espaço para receber mias de quarenta pessoas e saborear um belo jantar cozinhado no fogão de lenha.
Conhecia a poesia do Rubem,ignorava que escrevia textos geniais.Bem haja por os divulgar. Enriqueci. Bjito e uma flor.
Bjito e uma